O futuro possível: (contra) narrativas do desenvolvimento para pensar a América Latina no contexto da pandemia da Covid-19


A Possible Future: Development Counter-narratives to Think on Latin America amid the Covid-19 Pandemic


El futuro posible: (Contra) narrativas de desarrollo para pensar América Latina en el contexto de la pandemia de Covid-19


Recebido em 1º de março de 2021. Aceito em 22 de outubro de 2021.


Ana Júlia Mourão Salheb do Amaral2
https://orcid.org/0000-0003-2321-0177
Brasil

Luis Miguel Barboza Arias3
https://orcid.org/0000-0002-0765-730X
Costa Rica

› Para citar este artigo: Mourão-Salheb do Amaral, A. J. y Barboza-Arias, L.M. (2022). O futuro possível:(contra) narrativas do desenvolvimento para pensar a América latina no contexto da pandemia da Covid-19 . Ánfora, 29 (52), 94-123. https://doi.org/10.30854/anf.v29.n52.2022.804

Resumo


Objetivo: o objetivo deste trabalho é gerar uma discussão sobre duas práticas de desenvolvimento acontecidas no Brasil e na Costa Rica durante os primeiros meses da pandemia da Covid-19. A reflexão é acompanhada de insumos teóricos das abordagens pós-desenvolvimentistas, com a finalidade de aportar novos elementos de análise que contribuam para o aprofundamento da crítica epistemológica e sociopolítica aos processos de apropriação da natureza pelo modo de produção capitalista na América Latina e suas implicações nos tempos da Covid-19. Metodologia: quanto ao delineamento metodológico, as práticas de desenvolvimento apresentadas foram construídas como estudos de caso, em função do estipulado pela pesquisa qualitativa, que sugere a importância da identificação dos atores envolvidos na expressão de um fenômeno, suas interações complexas e o mapeamento das narrativas e estratégias de sobrevivência e resistência que emergem como formas de superação dos conflitos. Resultados: a análise dos resultados propõe um giro ontológico na abordagem reflexiva do desenvolvimento que é coincidente com a adoção de olhares alternativos para entender as crises socioambientais originadas no Antropoceno. Com o propósito de debater as possibilidades de análise que oferecem os novos olhares epistêmicos e onto-políticos, as duas experiências empíricas permitem exemplificar a inadequação das categorias tradicionais para atender os cenários de contingência, sendo pertinente a incorporação de abordagens não centrados em medidas de controle, securitização e planejamento. Conclusões: as conclusões sugerem que o conjunto destas reflexões permite uma melhor compreensão sobre as formas em que ciência, política e natureza articulam-se nas sociedades contemporâneas. Este conhecimento é fundamental nos estudos sobre as práticas de legitimação da democracia, os projetos alternativos de cidadania e o surgimento de novas identidades territoriais.


Palavras-chave : Ambiente; Ciências sociais; Cultura e desenvolvimento; Efeitos das atividades humanas; Pandemia.


Abstract


Objective: this paper aims to discuss development practices through the presentation of two case studies from Latin-American contexts. This reflection was done during the first months of the COVID-19 pandemic. Post-development perspectives were mobilized to explore new analytical dimensions in the epistemological and socio-political critique of the capitalist mode of appropriation of nature in América Latina and their potential implications amid the Covid-19 pandemic. Methodology: two study cases from Brazil and Costa Rica were elaborated. The qualitative methodological framework used to identify actors and their complex interactions became a useful tool in reconstructing different socio-political expressions, symbolic narratives, and survival/resistance strategies emerging from local groups. Results: social-environmental crisis emerging in the Anthropocene context suggest the need for different points of view and ontological turns to gain a better understanding of social change occurred in the margins of in the Western world. Latin-American societies are multiple and diverse. Both, Brazilian and Costa Rican experiences discussed in this paper, represent situated realities which cannot be generalized, but this is a rather important and critical issue. These case studies help illustrate how the non-critical adoption of hegemonic categories of sociotechnical control and securitization is inadequate to understand and explain the contingency emerging from these situated realities. Conclusions: we suggest in the final part of the paper that these reflections contribute to bring a different perspective on how science, political and nature converge in knowledge systems and how these systems are contested for different people, groups, and communities around the world. This reflection is crucial to the study of processes concerned with political legitimacy, democracy, and territorial political identities.


Keywords: Environment; Social sciences; Culture and development; Human activities effects; Pandemics.


Resumen


Objetivo: el objetivo del artículo es generar una discusión sobre dos prácticas de desarrollo realizadas en Brasil y Costa Rica durante los primeros meses de la pandemia del Covid-19. Se acompaña esta reflexión con insumos teóricos procedentes de los abordajes del posdesarrollo, con la finalidad de aportar nuevos elementos de análisis que contribuyan a profundizar la crítica epistemológica y sociopolítica de los procesos de apropiación de la naturaleza impulsados por el modo de producción capitalista en América Latina, y sus implicaciones en los tiempos del Covid-19. Metodología: en relación con el diseño metodológico, las prácticas de desarrollo son construidas como estudios de caso, según lo establecido por la investigación cualitativa, que sugiere la importancia de la identificación de los actores involucrados en la expresión de un fenómeno, sus interacciones complexas y el mapeo de narrativas y estrategias de sobrevivencia y resistencia que surgen como formas de superar el conflicto. Resultados: en la discusión de los resultados se propone un giro ontológico en el abordaje reflexivo del desarrollo, que es coincidente con el establecimiento de miradas alternativas para entender las crisis socioambientales asociadas con el Antropoceno. Con el propósito de debatir las posibilidades de análisis que ofrecen estas alternativas epistémicas y onto-políticas, las experiencias empíricas permiten ejemplificar la inadecuación de las categorías tradicionales para atender los escenarios de contingencia, siendo pertinente la incorporación de abordajes no centrados en las medidas de control, securitización y planificación . Conclusiones: en las conclusiones, señalamos que el conjunto de estas reflexiones permite una mejor comprensión sobre la forma en que ciencia, política y naturaleza se articulan en las sociedades contemporáneas. Este conocimiento es fundamental en el estudio sobre las prácticas de legitimación democrática, los proyectos alternativos de ciudadanía y el surgimiento de nuevas identidades territoriales.


Palabras claves: Ambiente; Ciencias sociales; Cultura y desarrollo; Efectos de las actividades humanas; Pandemia.


Introdução


O objetivo deste trabalho é gerar uma discussão sobre duas práticas de desenvolvimento acontecidas no Brasil e na Costa Rica durante os primeiros meses da pandemia da Covid-19. A reflexão é acompanhada de insumos teóricos das abordagens pós-desenvolvimentistas, com a finalidade de aportar novos elementos de análise que contribuam para o aprofundamento da crítica epistemológica e sociopolítica aos processos de apropriação da natureza pelo modo de produção capitalista na América Latina e suas implicações nos tempos da Covid-19. Nas primeiras seções, discute-se a intrusão de Gaia e a emergência de pensar os suportes técnico-científicos da modernidade. A tese da “desconexão com a natureza" sugerida por Bruno Latour nos convida a pensar na necessidade de avançar para uma nova ética da convivência entre espécies, que favoreça a reinserção do homem na natureza através de registros afetivos e experiências sensoriais que privilegiem a vitalidade do mundo.

Os caminhos traçados até o momento pela ideologia do progresso e do crescimento econômico sem limites estão levando a uma crise ecológica sem precedentes. As consequências dessa racionalidade instrumental comprometem a reprodução da vida e dos espaços da sociobiodiversidade. 

No cenário atual, marcado pelas incertezas e pela percepção constante de novos perigos, estão sendo redefinidos os dilemas éticos e políticos, ao tempo que a vulnerabilidade socioambiental que experimenta o mundo está levando ao surgimento de novos conflitos ambientais, que são uma expressão do esgotamento de modelo. Neste sentido, o Antropoceno marca descontinuidades graves; o que vem depois não será como o que veio antes. Esse mesmo conceito pode também nos chamar a atenção da recusa decisiva da separação entre Natureza e Humanidade, que tem paralisado a ciência e a política desde a aurora da modernidade. Edgardo Lander (2016) aborda uma questão importante, explicando a grave crise capitalista atual, é a perda de capacidade regulatória do sistema. A globalização neoliberal criou condições para que o capital possa se deslocar livremente. No entanto, diante dessa extraordinária combinação de ameaças, não apenas à democracia, à paz e à dignidade humana, como também à própria vida, encontramos povos em movimento e resistência.

É nesse sentido que os casos apresentados procuram identificar alguns elementos de ordem contextual e situada para problematizar em que medida o combate à pandemia da Covid-19 e as ações adotadas pelos governos nacionais para atender a crise sanitária e econômica, podem levar à reconsideração das abordagens normativistas e as intervenções planejadas, que comprometem o conhecimento adequado sobre a existência de outros agentes (incluindo os não humanos), e, ao mesmo tempo, põem em risco o equilíbrio ambiental que é preciso para a conservação das comunidades e sua reprodução simbólica e material.

Desta forma, o caso dos povos ribeirinhos do Baixo Tocantins- PA (Amazônia- Brasil) procura discutir a narrativa da (in)sustentabilidade do desenvolvimento planejado em um contexto de auto-organização, autonomia e resistência, no qual também confluem visões diferentes das relações sociedade-natureza, que vão se expressar na forma de luta e conflito, e os seus rearranjos de organização e estratégias no contexto da pandemia. Em contrapartida, o caso das plataformas digitais promovidas pelo governo da Costa Rica para estimular as atividades logísticas e de comercialização agrícola durante a pandemia indaga o caráter instrumental dessas iniciativas e identifica a necessidade de uma maior reflexão pública sobre os efeitos e potencialidades desses dispositivos em relação com a diversidade dos modos de vida locais, as territorialidades e a influência da paisagem natural.

A estrutura do presente trabalho é a seguinte: além desta introdução, na seção dois são descritas as considerações metodológicas que antecederam a escrita deste texto. Na seção três são estabelecidos os principais referenciais teóricos que orientam o estudo. Na seção quatro são apresentadas as experiências empíricas, as quais são problematizadas posteriormente nas seções cinco e seis. As conclusões recuperam a discussão sobre os novos horizontes epistêmicos e a inversão metodológica que se faz necessária para analisar e desenvolver as (contra)narrativas em questão de forma crítica.


Considerações metodológicas

O presente artigo faz parte de uma reflexão acadêmica que surgiu no contexto das discussões mantidas durante a participação dos autores, enquanto estudantes doutorandos, na disciplina- Desenvolvimento Rural I, do Curso de Pós- Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/ UFRGS), que ocorreu entre os meses de agosto a dezembro do ano de 2020. Uma versão anterior deste artigo foi apresentada durante o 3° Seminário América Latina (SIALAT), intitulado Democracia, natureza e epistemologias para pensar o amanhã, e realizado os dias 25, 26 e 27 de fevereiro (2021), em Belém do Pará (Brasil) de forma on-line .

Em ambos os momentos, as perguntas centrais que orientaram a formulação das ideias desenvolvidas são: em que medida o surgimento da pandemia da Covid-19 cria condições para repensar os paradigmas convencionais do desenvolvimento e sua aplicação nos estudos críticos do capitalismo? Quais as possibilidades de incorporar os debates recentes sobre o pós-desenvolvimento em elaborações teóricas que exploram as interligações entre os fenômenos pandêmicos e a questão ambiental no contexto do Antropoceno? Quais são os possíveis impactos da pandemia do Covid-19 para a trajetória e mudança das instituições associadas com o planejamento do desenvolvimento? É factível esperar uma reconfiguração política das forças sociais como resultado das estratégias impulsionadas pelos governos no atendimento da pandemia?

Dessas perguntas gerais derivam perguntas mais especificas que foram objeto de discussão com colegas pesquisadores e com o público em geral durante o evento da SIALAT: Como a pandemia afetou e/ou está afetando a criação de cenários futuros e à percepção pública sobre o planejamento do desenvolvimento? Quais os limites, oportunidades e possíveis resultados de impulsionar as práticas do desenvolvimento convencional para atender populações vulneráveis em tempos de emergência sanitária? Que tipo de novas narrativas e recortes discursivos inovadores entram em conflito com as ideias que continuam a sustentar a tese da excepcionalidade humana e o controle tecnocrático do mundo?

Os casos de estudo estão baseados nas experiências de trabalho de campo prévio dos autores com atores rurais do Brasil e da Costa Rica durante o ano anterior ao surgimento da pandemia. Neste sentido, ambos os casos são utilizados para mobilizar as principais colocações teóricas e pensar em novas categorias de análise, tendo como “ telón de fondo ” a pandemia da Covid-19 e os novos contextos, potencialidades e desafios associados com a crise sanitária.

A seleção destas experiências está fundamentada nos seguintes critérios:

1. Atores sociais (sejam comunidades, setores, organizações ou outras associações da sociedade civil) que tenham mantido uma interligação reconhecível com o Governo Estatal, através de ações encaminhadas pontualmente ou mediante implementação indireta de políticas públicas voltadas para o impulsionamento do desenvolvimento “controlado” no ano anterior ao surgimento da pandemia.

2. O conhecimento de algum tipo de controvérsia ou conflito que versa sobre a forma de atendimento ou tratamento por parte do Governo de alguma problemática ou questão significativa para esses atores, a qual tenha sido agravada com a pandemia ou como resultado das medidas implementadas pelo Governo Estatal para superar a emergência sanitária.

3. A identificação de medidas emergenciais por parte do Governo que estejam dirigidas a esses atores, com o propósito de conciliar as ações institucionais em andamento com estratégia de adaptação ao novo cenário provocado pela pandemia.

4. As experiências dos autores com os estudos de caso antes da pandemia e durante a pandemia da Covid-19 nos mostram o cenário de mudanças que ocorrem com essas populações e a relevância de problematizarmos aqui com este trabalho, quais fatores socioeconômicos permaneceram ou mudaram nesses novos tempos cheios de incertezas e desafios, e como essas populações nos dois estudos de casos estão lidando com essas situações que afetam sua reprodução social, econômica e produtiva em um contexto geral.

No caso das comunidades ribeirinhas do Baixo Tocantins- PA (Amazônia- Brasil), em entrevistas realizadas de forma on-line (web- vídeo), com informantes chaves da microbacia do Aricurá, município de Cametá, estado do Pará, através do Grupo de Estudos Diversidade Socioagroambiental na Amazônia, do Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (GEDAF/NUMA-UFPA); os roteiros de entrevistas foram anteriores à escrita deste trabalho, mas podem dialogar com a literatura apresentada, e como a pesquisa ainda está em andamento, não será possível a realização de um detalhamento maior dos resultados. No entanto, al guns apontamentos e possíveis pistas do que já temos em concreto, assim como também uma outra discussão que é possível fazermos neste momento é o da apropriação dos recursos naturais pelo modo de produção capitalista/ hegemônico e suas implicações nos tempos de COVID-19 no contexto brasileiro que será detalhado no item 4.1. Com isso para fazermos estes apontamento e possíveis pistas e/ou caminhos de análise, as entrevistas tiveram várias perguntas acerca: das questões produtivas- o que mudou nos sistemas produtivos locais com a pandemia de COVID-19 e como o isolamento social afetou as comunidades locais ribeirinhas no contexto socioeconômico no seu modo de vida e no escoamento dos seus produtos/alimentos para comercialização local.

Por causa das restrições de mobilidade e afastamento, se realizou uma revisão documental de publicações feitas na literatura acadêmica acerca das temáticas aqui discutidas durante o período compreendido entre janeiro e dezembro de 2020 para elaborar uma narrativa compreensível na construção dos estudos de caso. O conjunto de informação secundaria permitiu estabelecer um relato que brinda uma melhor perspectiva para a análise crítica, em função das variações no tipo de relação que tinham os atores com o Governo central antes e durante os primeiros meses da pandemia.


Elementos teóricos e conceituais



Gaia e os suportes técnico-científicos da modernidade

A hipótese de Gaia surgiu a partir de estudos que tiveram início em 1960 realizados por James Lovelock e Dian Hitchcock, no Laboratório de Propulsão a Jato da NASA, que buscavam verificar a existência de vida nos planetas Vênus e Marte. Para isso, foi realizada a comparação das atmosferas desses dois planetas com a atmosfera do planeta Terra. As características singulares da Terra levaram Lovelock a desenvolver a hipótese de Gaia, na qual se propõe que a biosfera atua como um sistema de controle adaptativo, mantendo a Terra em homeostase. Ele também passou a considerar a Terra análoga aos seres vivos, frequentemente qualificando-a como um ser vivo. Considerando o planeta Terra como um sistema de autocontrole. Neste sistema, a biosfera e o meio ambiente estariam acoplados e seriam inseparáveis: Gaia é uma entidade complexa que envolve a atmosfera terrestre, a biosfera, os oceanos e o solo. Esta totalidade constitui um controle de retroalimentação ( feedback ) ou um sistema cibernético, que busca otimizar, fisicamente e quimicamente, o ambiente para a biota ( Lovelock, Margulis, 1974). Desta forma, Lovelock e Margulis chegaram a um aprofundamento da definição de Gaia, que implicaria na biosfera funcionando como um sistema de controle adaptativo e que mantém a homeostase no planeta Terra. A noção da biosfera como um sistema de controle adaptativo que mantém a Terra em homeostase é o que nós denominamos hipótese Gaia (Lovelock, 1990).

Gaia trata-se de uma metáfora para “terra viva”, seu nome deriva de uma deusa grega. Aline de Fatima Chiaradia Valadão (2008) parafraseando Lovelock (2006):

é importante esclarecer que a metáfora terra viva não tem relação alguma com uma forma sensível, ou mesmo viva como um animal”, é conveniente ampliarmos a definição um tanto sentenciosa e limitada da vida como algo que se reproduz e corrige os erros de reprodução por seleção natural entre progênie . (p. 3)

Com isso, o surgimento de Teoria da Gaia veio para mostrar à humanidade que o problema de equilibrar o meio ambiente é real e que se não tomarmos ações imediatas, podemos tornar essa situação de desequilíbrio irreversível. Neste contexto o Antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência comum, Krenak (2019) nos dá algumas ideias para adiar o fim do mundo, tendo o devido cuidado com o nosso planeta Terra, com os recursos naturais que ainda possuímos e as sociedades tradicionais que são verdadeiras “guardiãs” desses recursos naturais e do nosso bem comum.

No contexto deste trabalho, discute-se a intrusão de Gaia e a emergência de pensar nos suportes técnico-científicos da modernidade. Os caminhos traçados até o momento pela ideologia do progresso e do crescimento econômico sem limites estão levando à uma crise ecológica sem precedentes. As consequências dessa racionalidade instrumental comprometem a reprodução da vida e dos espaços da sociobiodiversidade.

Latour tem defendido que Gaia tem sido mal compreendida por boa parte da comunidade científica, principalmente por aqueles que tentaram encaixar esta potente teoria, que apresenta uma nova descrição de um estado de coisas, em uma moldura antiga (Latour, 2013). Latour alerta ainda para o risco de um pensamento holístico que despreze a multiplicidade de Gaia: se a tratarmos como uma totalidade, ela será apenas uma possibilidade de recarregar as formas modernas de pensar, de recarregar a ideia de Natureza.

Os caminhos traçados até o momento pela perspectiva moderna nos levaram diretamente para a crise ecológica na qual nos encontramos. Pensar as questões ambientais de um modo não dualista parece-nos, neste sentido, essencial tanto para a compreensão, quanto para a formulação de possíveis soluções para elas. A suposta divisão de tarefas entre Ciência e Política, firmada pela constituição moderna só tem dificultado a vida daqueles a quem foi atribuída a capacidade de resolver os problemas: os cientistas se veem agora obrigados a sair de seus laboratórios para debater sobre entidades imprevisíveis, ambivalentes, que envolvem e são envolvidas por humanos; e os políticos, que pensavam representar exclusivamente as questões dos homens, precisam agora sair de seus gabinetes e levar em conta também o direito dos não-humanos (Pimentel, 2003).

Em consonância com Isabelle Stengers (2015), torna-se possível propor reflexões acerca do que a autora chama de “a arte de ter cuidado, e de (re) aprender essa arte”. Na perspectiva da autora, quando se trata de crescimento e desenvolvimento é justamente o contrário que ocorre. Stengers versa em sua obra como um todo, sobre como a catástrofe se tornou globalizada. Para a autora, essa confiança no crescimento poderá levar o mundo ao fim da linha, motiva refletir sobre o crescimento comum e o da economia, onde o princípio baseado na arte de ter cuidado perde totalmente o valor em virtude dos interesses que se encontram em volta.

Stengers (2015) descreve como o projeto de desenvolvimento global, é um projeto pejorativo de destruição de Gaia. Alguns exemplos nítidos do dia a dia, como enfatiza a autora, fazem pensar que não estamos em um processo de crise e sim uma catástrofe. Exemplo nítido disso são os inúmeros tratados, cúpulas e acordos (internacionais, governamentais, entre outros) sobre as mudanças climáticas que são apaziguados pelos governantes mundiais. A autora, diante dos novos tempos, sugere que torna-se importante criar uma forma de vida para depois do crescimento econômico, uma vida que explore conexões com novas potências de agir, sentir, imaginar e pensar.


O sentido da desconexão com a natureza

No contexto atual, a pandemia da Covid-19 se revelou uma das maiores manifestações do Antropoceno. Essa nova era geológica que, nas palavras de Paul Crutzen (2006), encontra-se caracterizada pelo impacto das ações de uma única espécie, o ser humano, sobre o conjunto de condições necessárias para a reprodução da vida e da biodiversidade no planeta; com consequências que vão desde o aquecimento global até alterações da paisagem natural.

Este conceito tem tido um maior desenvolvimento entre as ciências sociais, principalmente a antropologia. Existe ainda um debate acadêmico em torno de sua rigorosidade científica, as ideias e reflexões expressadas por Crutzen permitem estabelecer novos pontos de partida para repensar as alternativas. Para propósitos do nosso objetivo, é importante destacar o que se entender de alternativas em relação aos horizontes de possibilidade que estabelece a narrativa do Antropoceno, e que fazem possível a exploração de novos percursos de ação e interpretação do mundo (Barnett et al., 2016).

Portanto, convém identificar isto com alguns exemplos. Em primeiro lugar, existe hoje em dia uma maior problematização sobre a questão ambiental, que desencadeia efeitos diretos tanto na esfera pública e coletiva quanto no âmbito privado das pessoas. O surgimento dos movimentos em favor dos direitos dos animais, entre eles o auge do vegetarianismo e o veganismo, que têm a ver co m a dieta das pessoas e as decisões individuais de consumo. Ao mesmo tempo, estes movimentos pressionam as indústrias agroalimentares globais, ao exigir mudanças nos sistemas produtivos e a incorporação de procedimentos que sejam ambientalmente e ecologicamente sustentáveis. Desse modo, o desempenho ambiental tem se tornado um discurso empresarial que procura a incorporação de valores associados a produção mais limpa e a eco competitividade.

O segundo aspecto está relacionado com a esfera estatal, a questão ambiental também tem sido o objeto de um conjunto inovador de políticas públicas, dirigidas principalmente ao controle das mudanças climáticas, o qual está orientado principalmente para a incorporação de narrativas tecno-sócio-científicas, que tem como propósito a criação e transferência de tecnologias verdes para as atividades produtivas. Um caso paradigmático, no que diz respeito aos novos instrumentos de política para a ação climática inteligente, é a adoção de estratégias de economia circular e de bioeconomia, assim como outras medidas adotadas para a descarbonização da economia, que nos últimos anos têm experimentado o aumento de interesse por parte dos países da América Latina.

Em terceiro lugar, no âmbito acadêmico, os desafios ambientais têm incrementado o debate sobre a relação entre sociedade, tecnociência e ambiente. O surgimento de novas abordagens e correntes de pensamento, alguns mais críticos do que outros, têm em comum a problematização dos ambientes institucionais nos quais a ciência formal é feita. Isto é também um reflexo das pressões crescentes a fim de estabelecer mudanças epistemológicas e teóricas que deem conta dos novos cenários de crise. Um dos resultados dessas elaborações é justamente a centralidade adquirida pela noção de justiça no âmbito dos estudos sobre ecologia e sustentabilidade (Rauschmayer, Bauler, Schäpke, 2015). 

Desse modo, uma vertente recente dos estudos sobre transições sustentáveis tem se focado na análise das dimensões relacionais, cognitivas e culturais, que contribuem a legitimar visões particulares sobre os sistemas sócio-técnicos-ecológicos, e a forma em que esses sistemas se articulam em trajetórias de desenvolvimento que sugerem a direção da mudança em uma direção específica. Para Melissa Leach et al. (2018), o principal elemento problemático dessa articulação, que vamos chamar de instrumental, é a forma em que ela informa a esfera política. Segundo essa perspectiva, é preciso analisar as trajetórias de transição estabelecidas institucionalmente, através de ações planejadas pelos governos centrais, com a finalidade de identificar espaços de interação deliberativa entre o Estado e a cidadania, que permitam a democratização do conhecimento necessário para definir as vias inclusivas de adaptação.

Não obstante, também é importante levar em conta que a ênfase na interação deliberativa e a promoção da participação social nos espaços formais do debate público não é uma solução efetiva para resolver os problemas reais da democracia. Sendo preciso dispor de mecanismos adequados para favorecer a deliberação com outros conjuntos de autores (incluindo os não humanos) e com outras formas de conhecimento, em particular, os saberes ancestrais e as cosmovisões do mundo que se encontram inscritos em um registro diferente ao da modernidade ocidental ( Virtanen , Siragusa, Guttorm, 2020). 

Nesse sentido, além dos elementos de inclusão ou visibilização, o importante é evidenciar que existe uma multiplicidade de contextos da transição (Berkhout, Smith, Stirling , 2004), que vão se identificar com outros tipos de linguagens e representações discursivas e metafóricas. No centro do debate, então, encontra-se a importância de avançar para novas formas de diálogo que reconheçam desde o primeiro momento a existência de uma pluralidade cognitiva que não pode ser abordada de forma abrangente pelos sistemas fechados.

Com esta breve problematização, pretende-se apontar que a ideologia do desenvolvimento que se encontra associada aos discursos emergentes do crescimento econômico verde não consegue resolver o caráter rizomático dos desafios atuais. Em parte, porque a instrumentalização do conceito da sustentabilidade, vai aparecer como sendo dependente da continuidade dos modos de produção capitalista, ao tempo que se produz uma abstração da dimensão social e das demais crises complexas que ameaçam o planeta, como é o caso do crescimento da desigualdade estrutural e a sua relação com a vulnerabilidade socioambiental.

Por outro lado, a pandemia mostrou a evidente ineficácia dos mecanismos de controle dos regímenes sociotécnicos modernos. Wisdom Kanda e Paula Kivimaa (2020) argumentam que muitas das respostas dadas pelos governos durante as primeiras fases da propagação do vírus têm a ver com uma abordagem da securitização do Estado-nação. Essas alternativas representam respostas parciais que bridam a população com uma sensação de confiança momentânea, mas que não resolvem as expectativas de longo prazo.

É preciso recordar que a antropização dos ambientes naturais cria condições para que os encontros entre seres humanos e espécies silvestres sejam muito mais frequentes. Os efeitos das atividades humanas nos ecossistemas aumentam os riscos de que novos vírus passem de uma espécie para outra. A perda da superfície florestal, ocasionada pela deflorestação e o incremento da urbanização e dos solos agrícolas, provocam mudanças nas paisagens e aumentam a exposição ao contágio.

Em um artigo recente, Leach et al. (2021) se perguntam como e por que a Covid-19 nos exige repensar o desenvolvimento? Uma das principais ideias trazidas pelos autores é a importância de considerar o elemento da incerteza nas narrativas dominantes das políticas científicas e tecnológicas. A incerteza desempenha um rol configurante na percepção política sobre os perigos e ameaças. Ainda mais importante, porém, é considerar a relação que esse conceito tem com o nosso imaginário sobre a contingência, isto é, a existência de fenômenos que não podem ser da compreensão total e do domínio absoluto do ser humano. 

Ao mesmo tempo, nestas leituras emerge uma nova preocupação sobre a importância de disponibilizar políticas do cuidado, a solidariedade e a empatia que permitam ao ser humano achar novas formas de se inscrever na natureza e recuperar o sentido do sublime (Latour, 2018). Nesse sentido, é interessante constatar a forma como a pandemia da Covid-19 pode nos sensibilizar sobre a importância de repensar uma ética da convivência entre espécies que ponha fim às guerras sistemáticas contra a vida, auspiciadas pelo modelo de crescimento sem limites (Lander, 2016).


Como esses elementos podem ajudar-nos a pensar as realidades complexas da América Latina?

Com o propósito de desdobrar as possibilidades de análise que oferecem os novos olhares epistêmicos, neste apartado se faz menção a duas experiências empíricas com a intenção de problematizar a inadequação das categorias tradicionais e a necessidade de ir além das abordagens do controle, a securitização e o planejamento em cenários de contingência.


O caso das comunidades ribeirinhas do Baixo Tocantins- PA (Amazônia- Brasil)

Se reconhece que os problemas ambientais são reais e que neste contexto as representações sociais são importantes, atentando para a maneira como percebemos e nos referimos a estes problemas. Os povos tradicionais são considerados povos de resistência a esse contexto. Temos então nesse entendimento a questão ambiental como questionamento das representações e formas de organização social e suas relações com a natureza. Efetivamente, as contradições presentes em uma sociedade que mercantilizou o homem, a terra, e a água (Polanyi, 2000), na qual predomina a racionalidade econômica expressa na ideia da “dominação” da natureza, revelam-nos a insustentabilidade desse modelo hegemônico capitalista, o que poderá gerar um esgotamento dos recursos naturais globais; abordando Florit (2000), atualmente as consequências da intervenção humana na natureza são de caráter global, mesmo que em grande parte desconhecidas. Inclusive as áreas protegidas de “natureza intocada” são construções humanas, delimitadas e governadas por humanos (Hederich, 1993) . Trazendo para o debate, será que o homem dominou a natureza? Ou o homem foi dominado pelo modelo hegemônico capitalista? A base da financeirização e mercantilização a todo custo, a todo preço, da própria vida; podemos mensurar o valor da natureza? Qual o valor da vida? 

Essa insustentabilidade já está gerando problemas de diversas esferas como por exemplo: conflitos ambientais e impactos ambientais . Segundo Andréa Zhouri e Klemens Laschefski (2010), citados por ( Fleury, Almeida, Premebida, 2014) “ os conflitos ambientais revelam em geral modos diferenciados de existência que expressam a luta por autonomia de grupos que resistem ao modelo de sociedade moderna ” (p. 67). Nesse contexto da insustentabilidade abordada acima, a análise dos conflitos ambientais de acordo com os atores leva-nos, portanto, à possibilidade de reconhecer os múltiplos projetos de sociedade que acionam distintas matrizes de produção material e simbólica e que esbarram nas reais assimetrias do poder. Nas impressas dinâmicas sociais e políticas, contribuindo para construção de alternativas atentas aos princípios de sustentabilidade e de justiça ambiental. Segundo os mesmos autores, “o questionamento do modelo de desenvolvimento hegemônico frequentemente vinculado à '[..] luta de grupos não inseridos, ou apenas parcialmente inseridos, no sistema urbano-industrial-capitalista contra a desterritorialização' conduz a refletir sobre o processo de colonialidade do pensamento moderno” (Zhouri e Laschefski, 2010, p. 26, citados por Fleury, Almeida, Premebida 2014, p. 67). Para Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida (2009, p. 300), citados por Fleury, Almeida, Premebida (2014, p. 69) “essa análise é convergente com a configuração contemporânea da questão ambiental baseada na definição de “populações tradicionais” como sujeitos políticos, dispostos a uma negociação: em troca do controle sobre o território, comprometem-se a prestar serviços ambientais ”.

De acordo com Emilio Morán (1990), cada sociedade adquire critérios únicos que consagram a maneira pela qual os recursos devem ser utilizados e para qual fim. O ser humano, da mesma forma que tantas outras espécies, geralmente se reproduze e cresce até os limites ambientais, corrigindo seu comportamento reprodutivo e o uso dos recursos ambientais. Essas adaptações e interações incluem a dimensão espacial, a territorialidade, produtiva, econômica, social e, principalmente, a adaptabilidade ao meio, expressando dinâmicas de uso sustentável dos recursos naturais (Reis, 2015). Deste modo, as práticas de cada território são fundadas na simbolização de seu ambiente, e no significado social dos recursos, que geraram diversas formas de percepção e apropriação, regras de uso e acesso, práticas de manejo dos agroecossistemas e padrões culturais de uso e consumo dos recursos (Leff, 2009).

A exemplo das comunidades ribeirinhas do Baixo Tocantins- PA (Amazônia- Brasil) trata-se da identidade de uma determinada região onde ofícios e saberes relacionados a esse sistema produtivo local apelam aos sentimentos de pertencimento das pessoas àquele lugar e àquela comunidade, remetem aos vínculos afetivos e sociais, ao fenômeno de enraizamento das pessoas em uma região . A dinâmica de vida, os conhecimentos práticos e mecanismos socioculturais das sociedades tradicionais. A exemplo das comunidades ribeirinhas é permitido apontar caminhos mais adequados para o uso dos recursos naturais, com base no manejo sustentado do meio ambiente. As estratégias adaptativas ao meio natural das sociedades amazônicas constituem uma riqueza a ser valorizada, podendo, inclusive, oferecer exemplo de como balancear uso e conservação dos recursos naturais na Amazônia (Morán, 1990), a partir de combinações múltiplas de sistemas produtivos, integrando extrativismo, pesca e agricultura, gerando balanço entre os recursos disponíveis e a demanda das populações por estes recursos (Fraxe et al., 2007). 

As estratégias de diversidade produtiva e manejo dos recursos naturais de uma determinada sociedade podem ser mais bem adaptadas às condições do meio físico, possuindo, muitas vezes, sofisticadas formas de manejo oriundas de uma longa experiência com relação ao meio natural, que resistem às mudanças impostas pelas forças externas (Adams, 2002). Portanto, a diversidade produtiva representa a redução de riscos para essas populações e a independência de uma única maneira de sobreviver, oportunizando às famílias a se adaptarem e a diversificarem os seus meios de vida. Torna-se uma condição indispensável à sobrevivência e à sustentabilidade dos territórios rurais na medida em que garantem maior autonomia e controle sobre o processo de reprodução social (Perondi, 2007, Perondi, Kiyota, Gnoatto , 2009).

Tratando- se do contexto da pandemia da Covid-19, que afeta de forma diferente as populações em função das suas condições territoriais, as comunidades ribeirinhas do baixo Tocantins- PA tiveram que se adaptar a esse “novo normal” e com isso tiveram que fazer rearranjos na sua organização social, como também produtiva e econômica. Visando este novo protocolo de pesquisa o Grupo de Estudos Diversidade Socioagroambiental na Amazônia, do Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (GEDAF/NUMAUFPA), efetuou algumas entrevistas (por web vídeo) com moradores de algumas comunidades ribeirinhas do território do baixo Tocantins. Eles relataram de forma geral que sentiram diversas dificuldades em relação a falta de informação sobre a pandemia, sobre o isolamento social e como se prevenir em relação ao contágio do vírus. Em relação a reorganização social, produtiva e econômica não podemos apontar ainda um panorama geral, pois a pesquisa ainda está em andamento. Mas com certeza a dinâmica de vida, assim como o modo de vive-la foram diretamente afetados, pois sempre estiveram na companhia de familiares, parentes e vizinhos, e diante do isolamento social essa socialização afetiva e produtiva foi afetada.

Um outro ponto destacado é em relação a apropriação dos recursos naturais pelo modo de produção capitalista que essas comunidades ribeirinhas estão enfrentando como um todo. Estamos presenciando no Brasil, infelizmente o desmonte de todo um histórico de conquistas políticas em prol da conservação dos nossos recursos naturais em plena pandemia da Covid-19 em que se preferiu “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas” (Frase do ministro do Meio Ambiente- Ricardo Salles, site G1, 2020).

As novas propostas de modificações no licenciamento ambiental só reforçam ainda mais essa política de desmonte dos recursos naturais em prol do que podemos denominar nessa aliança entre o capital e a terra- a terra aqui vista não como meio de produção, mas sim como mero substrato físico. A exemplo desta aliança e apropriação da natureza, os índices de desmatamento da Amazônia apresentaram no ano de 2020 um novo recorde, são dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE, 2021) unidade vinculada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI); em que valor consolidado da área desmatada, por corte raso, entre o período de 1 de agosto de 2019 e 31 de julho de 2020 foi de 10.851 km 2 . Este valor representou um aumento de 7,13% em relação a taxa de desmatamento apurada pelo PRODES em 2019 que foi de 10,129 km 2  para os nove estados da Amazônia Legal Brasileira (ALB). Esta taxa é calculada anualmente baseada nos dados gerados pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (PRODES). Esse alto índice de desmatamento, não só terá, mas já tem várias consequências para o ambiente e para os povos tradicionais brasileiros como: a perda da biodiversidade, a expulsão de povos tradicionais que prestam serviços ambientais4, a exemplo dos povos indígenas amazônicos e para as mudanças climáticas com o aumento das emissões dos gases de efeito estufa, de acordo com Philip Fearnside (2005).

Um outro fator também de preocupação e que está atrelado à reprodução dessas comunidades ribeirinhas é o não pagamento do auxílio emergencial5 para os agricultores familiares brasileiros. Esse auxílio poderia, minimamente, ajudar na produção dos alimentos dessas famílias, já que muitas feiras e locais que comercializavam alimentos foram fechadas por conta das prevenções e protocolos a fim de evitar o contágio do novo coronavírus. Com base em José Graziano da Silva (1999), o autor chama a atenção para uma política de desenvolvimento rural que precisa articular um amplo conjunto de outras políticas não- agrícolas que amparem os trabalhadores rurais socialmente desfavorecidos e em condições mais preocupantes de pobreza, inclusive. Por mencionar a pobreza preocupante no Brasil, enquanto o agronegócio brasileiro bate recorde histórico na produção de grãos, com crescimento de 24,3% em seu PIB em 2020, o Brasil voltou para o mapa da fome, as famílias brasileiras estão em situação de fome (19 milhões de famílias enfrentam a epidemia da fome em 2020- representando cerca de 9% da população brasileira) em plena pandemia da Covid-19 ( Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar [ Rede PENSSAN], 2021).


O caso das plataformas digitais e os produtores agrícolas na Costa Rica

Em que medida a reflexão pós-desenvolvimentista sobre o Antropoceno pode contribuir para a solução dos efeitos adversos da Covid-19? Até que ponto a incorporação das abordagens da securitização durante a pandemia representa uma ameaça para a construção de espaços socioecológicos inscritos à margem da modernidade ocidental?

Para ensaiar uma resposta satisfatória a essas perguntas é preciso entender o surgimento do coronavírus em um contexto de crise representacional da modernidade que tem sido amplamente discutida por autores como Anthony Giddens (1991) e (Beck, Giddens, Lash , 1995). Por um lado, essa crise tem se manifestado como uma nova expressão do agravamento de um sistema econômico expansivo e predatório: a insustentabilidade nos limites do modelo de crescimento capitalista. Por outro lado, contribui para uma maior legitimação das práticas científicas (Stengers, 2015), que são organizadas pelos regimes sociotécnicos dominantes para mobilizar um conjunto de conhecimentos, tecnologias e arranjos institucionais, e têm como função brindar uma resposta rápida e efetiva diante a perda de confiança e a crescente sensação de risco.

Esse desdobramento representa, portanto, a principal contradição dos tempos atuais, e poderia resultar em um cenário problemático para o bem-estar comum a longo prazo se não levada em consideração certas precauções analíticas. Para exemplificar estas questões, vamos focar na experiência da Costa Rica no atendimento durante a pandemia das medidas de política pública adotadas pelo Ministério de Agricultura y Ganadería (MAG). 

Em primeiro lugar, convém assinalar que as autoridades agropecuárias do país têm celebrado com grande alegria o “desempenho sobressalente" desse conjunto de atividades econômicas durante os meses da pandemia, baseando-se no incremento de dois pontos porcentuais (2%) no nível de exportação de 2020 em relação com o ano anterior (Umaña, 2021).

Ao mesmo tempo, se fala de uma reinvenção da agricultura (O’neil, 2020) por causa do desenvolvimento de uma série de aplicativos tecnológicos destinados a facilitar os processos de comercialização de produtos e as questões logísticas. O comércio eletrônico tem se tornado a principal estratégia das organizações agropecuárias (setor público, cooperativas e associações de produtores) para se adaptar às novas restrições de mobilidade e o isolamento social. No país, somente nos primeiros seis meses de 2020, mais de 3000 empresas de todos os setores da economia começaram a utilizar essas tecnologias (Castro, 2020) e alguns pesquisadores já estão considerando as vendas on-line do setor agropecuário como potenciais modelos de negócio para empreendedores. 

No setor cafeicultor e do gado, grupos de especialistas do Instituto do Café (ICAFE) e a Corporación Ganadera (CORFOGA,) em colaboração técnica com o MAG, criaram protocolos COVID-19 baseados no uso das plataformas tecnológicas. O aplicativo “La Finca Agropecuaria” foi conceitualizado e desenvolvido pelo MAG, a Promotora de Comércio Exterior (PROCOMER) e a Cámara Costarricense de la Industria Alimentaria (CACIA), com a finalidade de fornecer um ponto de encontro virtual entre produtores e consumidores de forma direta.

Apesar de que estas iniciativas representam uma inovação importante em termos do encurtamento das cadeias de valor e a distribuição mais justa das margens de utilidade a favor dos produtores, é necessário reconhecer que a adoção desses dispositivos beneficia a quem já dispõe de capacidade tecnológica instalada e que faça uso dos “telefones inteligentes”6, sem distinguir a diversidade dos tipos de agricultura, produtores, agricultura e estilos de aprendizagem, que vão determinar a apropriação e adaptação desses dispositivos em função de cada contexto e grupo social específico. 

De forma contrária, os críticos de adoção e funcionamento destas iniciativas argumentam que o país atravessa uma crise de descoordenação institucional que afeta a transferência das tecnologias em um momento em que esses insumos resultam vitais. Além disso, sugere-se que existem debilidades importantes nos esquemas de governança, pouca vontade política e falta de liderança por parte de alguns organismos públicos governamentais (Hernández-Sanchéz, 2020). 

Em ambos os casos, a alternativa proposta é a mesma: uma agricultura competitiva orientada pela modernização técnica e segundo a abordagem das soluções prioritárias baseadas na natureza (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2020). Não obstante, uma das principais limitações que apresentam essas perspectivas é a ausência de descrições detalhadas sobre a complexidade dos modos de vida e as dinâmicas rurais que ultrapassam o âmbito agro produtivo. Dessa forma inclusive, se tem proposto o estabelecimento de um fluxo de atração de inversões agroindústrias para garantir a “ausência” de desenvolvimento rural em regiões determinadas. 

A princípio, a funcionalidade prática dos aplicativos promovidos pelas organizações do setor agropecuário da Costa Rica como saída da contração econômica originada pela pandemia é favorecida pela abstração que esses dispositivos fazem dos produtores e seu entorno. Nesse cenário, a intermediação do mercado facilita o acesso aos dispositivos sem considerar a legitimação social das tecnologias no contexto imediato da sua incorporação e a sua integração em relações sociais intermediadas por múltiplos saberes e formas de perceber a natureza. 

Em compensação, a modernização técnica da agricultura não é suficiente para superar a crise da questão ambiental, e muito menos as consequências econômicas da emergência sanitária nesse setor. O impulsionamento dos aplicativos tecnológicos permite constatar a individualização das respostas institucionais do tipo assistencialista, em um momento em que o principal desafio é a integralidade das políticas públicas. Neste ponto, convém chamar a atenção para duas dimensões do problema: a primeira delas está relacionada com o ressurgimento das narrativas de sustentabilidade ancoradas no tratamento instrumental da natureza. Segundo este ponto de vista, a sustentabilidade é uma dimensão dos sistemas produtivos altamente competitivos. Assim, se acredita que para garantir a continuidade de uma atividade econômica, só será preciso mudar o mecanismo de funcionamento para adequá-lo ao novo contexto. As soluções propostas continuam a estar focadas no controle dos efeitos adversos e não na revisão das causas originais da problemática principal. As medidas conjunturais provocam o enfraquecimento das capacidades de organização política e a ação coletiva das pessoas produtoras, uma vez que as afastam do debate público sobre as interligações entre os modelos produtivos dominantes, o deterioro ambiental e o surgimento da pandemia.

No entanto, a segunda dimensão tem a ver com a ausência de uma reflexão analítica que torne visível as implicações que têm a ciência, tecnologia e inovação no trabalho cotidiano das pessoas produtoras, além da simples experimentação com os recursos técnicos disponíveis. Esse é justamente o foco da abordagem do desenvolvimento inclusivo. Assim, a promoção dos dispositivos tecnológicos tem lugar no contexto caracterizado pela ausência de perfis sociodemográficos e populacionais que permitam adaptar as tecnologias às necessidades e demandas específicas de cada coletivo ou setor produtivo ( Habiyaremye, Kruss, Booyens, 2020). Se assume com relativa facilidade que a totalidade das pessoas produtoras terão acesso aos telefones celulares e disporão das capacidades intelectuais para fazer o uso adequado dessa tecnologia. A razão pela qual esse imaginário continua a se manter sem aparente resistência é a mesma que torna possível a confiança cega na ideologia do progresso: no interesse de contribuir ao incremento da rentabilidade do setor em termos agregados, as histórias individuais são desestimadas.

O caráter contingente das novas medidas instaura-se como uma narrativa emergencial para a intervenção planejada dos espaços geográficos que contêm a atividade agrícola, sem se perguntar por aspectos da territorialidade e da paisagem que são significativos para as populações que habitam esses territórios e que intervém de forma decisiva na sua construção do sentido de lugar e de pertencimento.


Novos horizontes epistêmicos

As abordagens pós-desenvolvimentistas aprofundam a crítica epistemológica e sociopolítica com elementos analíticos que permitem caracterizar de forma geral a crise de insustentabilidade do sistema atual. Nesse contexto, a pandemia da Covid-19 se insere no mundo como um registro histórico sem precedentes que torna possível a problematização das visões lineares do progresso e o bem-estar, baseadas comumente no imaginário do controle tecno-científico.

Convém, portanto, aportar algumas considerações adicionais para acompanhar a discussão posterior do tema. A primeira questão que pode ser pontuada se refere à nova concepção das incertezas que nos está oferecendo o coronavírus (Stirling, Scoones, 2020). Com o surgimento de catástrofes ambientais e sanitárias também são estabelecidos cenários de crise em que se faze necessário repensar o rol do ser humano em relação às suas próprias ações e às ações dos atores não humanos (Sousa, Pessoa, 2019).

E neste sentido se indica que para recuperar o sentimento do sublime no mundo (Latour, 2018) também é preciso ressignificar a particularidade do mistério que a natureza pode despertar em nós. O “deixar-se surpreender” pelas expressões do mundo natural é prestar atenção para o caráter espontâneo das relações que surgem cotidianamente entre diferentes espécies, e que tem um efeito direto na preservação dos ecossistemas. Os limites da racionalidade podem ser expandidos por meio de outras sensibilidades e formas de sentir-pensar com a Terra (Escobar, 2014). As humanidades ambientais, por exemplo, adquirem uma maior significância neste contexto.

Para alguns autores, a Covid-19 representa uma fissura abstrata no modelo civilizatório (Morea, 2021). Não obstante, a pandemia também oferece uma oportunidade para reinserir o humano “como parte” da natureza. É nestes termos que se devem procurar as condições para alcançar uma mudança de paradigma que dê conta dos desafios atuais e as ameaças latentes. 

Por outro lado, resulta positivo reconhecer que a pandemia está nos levando a conceber o futuro como um vasto “território de possibilidade”, ao abrir espaços de discussão sobre as interações complexas entre ciência, política e modos de vida, que anterior ao Covid-19 não existiam ou eram parte de esferas de diálogo fechadas. Sem dúvida, as medidas de confinamento e distanciamento social têm suposto um terreno fértil para a experimentação de novas sensorialidades. Os estudos sobre as afetividades se estabelecem como um campo rico para a pesquisa do Antropoceno na era pós-Covid-19, uma vez quem eles podem nos ajudar a entender a relação entre as vivências da paisagem e do lugar, e a construção de novas materialidades que são significativas para os atores no plano existencial, espiritual e intersubjetivo. Muitas destas questões ainda permanecem sem visibilidade, sendo de maior interesse para a antropologia do desenvolvimento.

A pandemia da Covid- 19 evidenciou que a normalidade aparente, na qual vivemos, está marcada pelo sentido do imediato e a vigência do presente. Não obstante, a Covid-19 está nos obrigando a entender que para construir o amanhã é preciso ir além da nossa confiança cega nos regimes tecnocráticos como via exclusiva de realização-exclusivamente- humana. 

A ideia de desconexão com a natureza, abordada por pensadoras como Donna Haraway e Anna Tsing, faz parte de uma perda das capacidades sensoriais e emocionais do ser humano com seu entorno natural (Tsing, 2010; Greenhalgh-Spencer, 2019). De modo progressivo, a dominância das práticas utilitaristas no capitalismo moderno tem reduzido a convivência entre espécies a meras relações mercantilizadas, que se orientam quase exclusivamente pelo valor de troca. Portanto, é importante privilegiar reflexões que permitam imaginar comunidades vitais ampliadas, e que façam o possível para recolocar os valores de justiça, co-habitabilidade e reciprocidade no centro de uma nova ética da convivência entre espécies, além dos meros princípios normativos. Outra das lições que necessitamos aprender com a pandemia é a transformação sustentável, que requer a adoção de uma filosofia que reconheça os direitos da natureza. 

Porém, é claro que as mudanças, para que possam ser significativas, requerem de elementos simbólicos e materiais que permitam levar o conjunto destas inquietações aos âmbitos de discussão pública. Para isto é necessário que a recursividade deste pensamento crítico seja cristalizada em uma agenda política que disponha de conteúdos claros. Não é suficiente apenas mudanças na semântica da linguagem convencional do crescimento econômico. Como tem sido discutido, o capitalismo dispõe de estratégias discursivas para adotar narrativas de sustentabilidade que são funcionais para sua lógica intrínseca de reprodução.

Justamente, um dos principais desafios na atualidade está relacionado com a diminuição da legitimidade social associada com as instituições que promovem essas mudanças menores, as quais não problematizam as relações estruturais de poder, e tampouco o acesso diferenciado a direitos que supõem ser universais. Isto põe em risco a estabilidade democrática, já que coincide com o aumento da vulnerabilidade socioambiental de comunidades de vida que também lutam contra a desigualdade econômica, a exclusão social e a marginalidade.


Um ponto de inversão metodológica

As provocações e reflexões feitas neste artigo nos instigam a pensar sobre novas categorias analíticas para compreender os fenômenos do desenvolvimento e a sustentabilidade, além dos marcos teóricos e epistemológicos focados na crítica sociopolítica ao capitalismo.

A procura de outros elementos referenciais implica reconhecer que as abordagens tradicionais são limitadas e não permitem problematizar a complexidade do inédito com a rigorosidade adequada ( Kahlau, Santos, Souza-Lima, 2019). No cenário mundial atual, a pandemia da Covid-19 coincide com o acentuamento de crises que se superpõem, e isso não é uma coincidência sutil.

O principal desafio é pensar o impensado (Deleuze, 2002), através de conceitos reflexivos que sejam suscetíveis a serem desdobrados segundo a particularidade dos contextos e a especificidade das realidades situadas.

Nesse sentido, a concepção da nova ética da convivência entre espécies pode ser útil na medida em que ela propõe uma reflexão orientada ao estudo dos repertórios relacionais que derivam das conexões e interdependências entre sociedade e natureza a partir de uma perspectiva não linear nem instrumentalizada.

No nível metodológico, é fundamental avançar na superação de olhares do tipo estruturalista que privilegiam o estudo dos vínculos sociobioafetivos entre o ser humano e seu entorno. Ao contrário, a reinserção do ser humano na natureza requer da incorporação de perspectivas construtivistas que valorizem a centralidade dos atores na construção simbólica, material, recursiva e existencial do lugar que habitam (Porto-Gonçalves, 2017).

As metodologias a serem implementadas nos estudos que buscam identificar a evolução destas (contra)narrativas (territorialmente localizadas), devem considerar o contexto situado como o espaço de expressão de práticas identitárias e criadoras do sentido de pertencimento. As técnicas antropológicas clássicas, como a etnografia e as observações participantes, tem demostrado ser úteis para identificar os valores compartilhados e a cosmovisão do mundo que intervém na conformação de comunidades culturais. Desta forma, essas técnicas também possuem potencial como instrumentos de registro das relações de proximidade, convivência e respeito, que são estabelecidas por comunidades de vida ampliadas, que incorporam as preocupações pelo cuidado e a proteção das outras espécies e os atores não humanos, como rios e montanhas, através das abordagens pós-naturais e pós-humanistas (Castree, Hulme, Proctor 2018), relacionais (Deleuze, Parnet,1996; Darnhofer et al. 2016), e não representacionais (Lorimer, 2008), que ao mesmo tempo estabelecem diálogos interdisciplinares e diálogos entre múltiplos saberes.

Vale ressaltar que nos últimos anos a história da arte tem contribuído com um conjunto de técnicas e metodologias que, desde a perspectiva criativa, procuram revitalizar o interesse estético pelas paisagens de preservação da vida e da natureza no Antropoceno (Thorsen, 2020). Além da sua vocação artística, muitos dos trabalhos desenvolvidos nesta direção fazem crítica da crescente vulnerabilidade socioambiental e utilizam um conjunto amplo de recursos estilísticos para problematizar a necessidade de uma virada ecológica para evitar a destruição do planeta (Guinard et al., 2020).

Não obstante, faz-se importante o paulatino abandono dos horizontes normativos na “definição” do futuro possível e as alternativas do amanhã. Neste sentido, convém assinalar que o sentido da “futurabilidade” nestas metodologias emergentes tem sido esvaziado de concepções cosmológicas de tempo/espaço que passou a ser utilizado para expressar os deslocamentos espaciotemporais que a modernidade ocidental dominante tem propiciado em outros projetos civilizatórios.


Conclusões


Neste artigo se discutiu a importância de gerar uma reflexão crítica sobre a complexidade das relações sociedade-natureza no Antropoceno. Em particular, se procurou ressaltar a vigência das capacidades imaginativas e criativas do ser humano para oferecer alternativas aos processos de apropriação da natureza pelo modo de produção capitalista.

Os casos de estudo apresentados nos ajudaram a problematizar os limites das abordagens convencionais e sua incapacidade para responder diante circunstâncias de incerteza caraterizadas pela contingência e o inédito, ainda mais visíveis neste contexto de pandemia da Covid-19. Portanto, é preciso aprofundar os debates informados sobre os efeitos que têm as soluções sociotécnicas no agravamento das crises socioambientais. Do mesmo modo, a incorporação de medidas do controle e securitização no planejamento institucional dos governos precisa de uma maior discussão pública. Faz-se necessário determinar as formas complexas em que as narrativas de progresso e modernização tensionam e ameaçam a vitalidade dos múltiplos modos de vida que coexistem nas margens do capitalismo.

Evidencia-se assim, a importância de aprofundar a discussão sobre o caráter linear e muitas vezes instrumentalizado das narrativas dominantes sobre o desenvolvimento e a sustentabilidade. Para isto, é importante revisar constantemente a forma em que conceitos como ambiente e tecnologia estão sendo mobilizados pelas políticas públicas no âmbito nacional, regional e local. Ainda mais significativo de analisar, é a forma em que estas narrativas são percebidas pelos atores em contextos específicos e o tipo de interfaces que elas contribuem a criar: seus desdobramentos, afinidades e resistências.

Também não se deve esquecer que o conjunto destas reflexões permite uma melhor compreensão sobre as formas em que ciência, política e natureza se articulam nas sociedades contemporâneas. Este conhecimento é fundamental nos estudos sobre os processos de legitimação da democracia, os projetos alternativos de cidadania e o surgimento de novas identidades territoriais.

As práticas do desenvolvimento identificadas a partir dos estudos de caso também nos permitiram mobilizar um conjunto de referenciais teóricos para problematizar a ideia da desconexão com a natureza. Desse modo, a reflexão sobre uma nova ética da convivência entre espécies faz parte dos novos horizontes epistêmicos para melhor entender essas preocupações. Não obstante, ela necessita, para seu desenvolvimento, da incorporação de metodologias e técnicas adequadas. Uma primeira sugestão neste sentido é fazer uma inversão metodológica que permita mudar os olhares estruturalistas e de corte normativo, e desta forma avançar para a aplicação de abordagens construtivistas.

Estas considerações merecem de uma maior elaboração empírica e metodológica, o qual constitui uma limitação importante deste estudo. Se espera que as questões colocadas até aqui contribuam para construir uma agenda de pesquisa sobre a trajetória destas (contra)narrativas e sua incorporação em processos que procuram os futuros possíveis através da proteção dos bens comuns e das comunidades de vida.


Referências


Adams, C. (2002) Estratégias adaptativas de duas populações caboclas (Pará) aos ecossistemas de Várzea estuarina e estacional: uma análise comparativa . 2002 [Tese Doutorado, Universidade de São Paulo].


Barnett, J.; Tschakert, P.; Head, L.; Adger, W. N. (2016). A Science of Loss. Nature Climate Change , 6 (11), 976-978.

Beck, U.; Giddens, A.; Lash, S. (1995). Modernização reflexiva . Editora Unesp.


Berkhout, F.; Smith, A.; Stirling, A. (2004). Socio-technological Regimes and Transition Contexts. In B., Elzen; F., Geels; K., Green (Eds.), System Innovation and the transition to sustainability: Theory, evidence and policy . Edward Elgar Publishing.


Carneiro da Cunha, M.; Almeida, M. (2009). Populações tradicionais e conservação ambiental. In M., Carneiro Da Cunha (Ed.), Cultura com aspas e outros ensaios . Cosac Naify.


Castree, N.; Hulme, M.; Proctor, J. D. (Eds.). (2018). Companion to Environmental Studies . Routledge.


Castro, J. (29 de julho de 2020). Tres mil empreendedores brincaron a comercio electrónico ante Covid-19 . Larepublica.net. https://www.larepublica.net/noticia/tres-mil-emprendedores-brincaron-a-comercio-electronico-ante-covid-19


Crutzen, P. J. (2006). The “anthropocene”. In E., Ehlers; T., Krafft (Eds.), Earth System Science in the Anthropocene . Springer.


Darnhofer, I.; Lamine, C.; Strauss, A.; Navarrete, M. (2016). The Resilience of Family Farms:

Towards a Relational Approach. J. Rural Stud ., 44 , 111–122.


Deleuze, G. (2002), Diferencia y repetición . Amorrortu Editores.


Deleuze, G.; Parnet, C. (1996). Dialogues. Flammarion.


Escobar, A. (2014). Sentipensar con la tierra. Nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Ediciones UNAULA.


Fearnside, P. M. (2005). Desmatamento na Amazônia brasileira: história, índices e consequências.  Megadiversidade , 1 (1), 113-123.


Fleury, L. C.; Almeida, J.; Premebida, A. (2014). O ambiente como questão sociológica: conflitos ambientais em perspectiva. Sociologias , 16 , 34-82.


Florit, L. (2000). O lugar da "natureza" na teoria sociológica contemporânea . XXIV Encontro Anual da ANPOCS . Petropolis, Brasil. De 23 a 27 de outubro de 2000.


Fraxe, T.; Pereira, J. P.; Dos, S.; Witkoski, A.C. (2007). Comunidades ribeirinhas amazônicas: modos de vida e uso dos recursos naturais . EDUA.


Giddens, A. (1991). As conseqüências da modernidade . Editora Unesp.


Graziano Da Silva, J. (1999). Tecnologia e agricultura familiar . Editora da UFRGS.


Greenhalgh-Spencer, H. (2019). Teaching with Stories: Ecology, Haraway, and Pedagogical Practice. Studies in Philosophy and Education , 38 (1), 43-56.



Guinard, M.; Lin, E; Latour, B. (2020). Coping with Planetary Wars . E-flux , 114 . https://www.e-flux.com/journal/114/366104/coping-with-planetary-wars/


G1. (22 de mayo de 2020). Ministro do Meio Ambiente defende passar 'a boiada' e 'mudar' regras enquanto atenção da mídia está voltada para a Covid-19. https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml


Habiyaremye, A.; Kruss, G.; Booyens, I. (2020). Innovation for Inclusive Rural Transformation: The Role of the State. Innovation and Development , 10 (2), 155-168.


Hederich, F. (1993). No queremos medio ambiente, lo queremos completo. Ánfora , 1 (2), 41-42. https://publicaciones.autonoma.edu.co/index.php/anfora/article/view/456


Hernández-Sanchéz, S. (4 de maio de 2020). Las «verdades» de Renato Alvarado que ya he advertido . Elmundo.cr. https://www.elmundo.cr/opinion/las-verdades-de-renato-alvarado-que-ya-he-advertido/


Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. (Mai 21, 2021). A taxa consolidada de desmatamento por corte raso para os nove estados da Amazônia Legal em 2020 foi de 10.851 km2. http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5811


Kahlau, C.; Santos, T. G. D.; Souza-Lima, J. E. (2019). Paradigmas de desenvolvimento, natureza e subjetivação: as ressignificações do sujeito nas múltiplas crises da humanidade. Desenvolvimento e Meio Ambiente , 51.


Kanda, W.; Kivimaa, P. (2020). What Opportunities Could the COVID-19 Outbreak Offer for Sustainability Transitions Research on Electricity and Mobility? Energy Research and Social Science , 68 , 1-5.


Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo . Companhia das Letras.


Lander, E. (2016). Com o tempo contado: crise civilizatória, limites do planeta, ataques à democracia e povos em resistência. In G., Dilger; M., Lang; J.P., Filho (Coords), Descolonizar o imaginário. Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento . Elefante.


Latour, B. (2013). An Inquiry into Modes of Existence . University Press.


Latour, B. (2018). Esperando a Gaia. Componer el mundo común mediante las artes y la política.  Cuadernos de Otra parte. Revista de letras y artes , 26 , 67-76.


Leach, M.; MacGregor, H.; Scoones, I.; Wilkinson, A. (2021). Post-pandemic Transformations: How and Why COVID-19 Requires Us to Rethink Development. World Development, 138 , 105-233.


Leach, M.; Reyers, B.; Bai, X.; Brondizio, E. S.; Cook, C.; Díaz, S.; Espindola, G.; Scobie, M.; Stafford-Smith, M.; Subramanian, S. M. (2018). Equity and Sustainability in the Anthropocene: A Social–ecological Systems Perspective on Their Intertwined Futures. Global Sustainability , 1.



Leff, E. (2009). Complexidade, racionalidade ambiental e diálogo de saberes. Educação & Realidade , 34 (3), 17-24.


Lorimer, H. (2008). Cultural Geography: Non-Representational Conditions and Concerns. Progress in Human Geography , 32 (4), 551-559.


Lovelock, J.E.; Margulis, L. (1974). Biological Modulation of the Earth’s Atmosphere.

Icarus , 21 , 471-489.


Lovelock. J. E. (1990). Hands Up for the Gaia Hypothesis. Nature, 344 (6262), 100-

102.


Morán, E. F. (1990). A Ecologia humana das populações da Amazônia . VozeS.


Morea, J. P. (2021). Post COVID-19 Pandemic Scenarios in an Unequal World Challenges for Sustainable Development in Latin America.  World, 2 (1), 1-14.


Perondi, M. Â. (2007). Diversificação dos meios de vida e mercantilização da agricultura familiar [ Tese Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul].


Perondi, M. Â.; Kiyota, N.; Gnoatto, A. A. (2009). Políticas de apoio a diversificação dos meios de vida da agricultura familiar: uma análise propositiva . Conference: Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. Londrina.


Pimentel, C. P. (2003). Crise Ambiental e Modernidade: Da oposição entre natureza e sociedade à multiplicação dos híbridos [Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós Graduação EICOS, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro].


Polanyi, K. (2000). A grandeTransformação. As origens de nossa época . Editora Campus.


Porto-Gonçalves, C. W. (2017). De saberes e de territórios: diversidade e emancipação a partir da experiência latino-americana. In V., Do Carmo Cruz; D., Araújo de Oliveira (Coords), Geografia e giro descolonial: experiências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico . Letra Capital.


Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. (2020). Human Development Report 2020. The Next Frontier Human Development and the Anthropocene . United Nations Development Programme.


O’Neil, K. C. (16 de maio de2020). As plataformas de e-commerce estão conseguindo aproximar produtores e consumidores em uma relação mais direta e justa . Universidad de Costa Rica. https://www.ucr.ac.cr/noticias/2020/05/16/la-agricultura-costarricense-se-reinventa-frente-a-la-pandemia-del-covid-19.html


Rauschmayer, F.; Bauler, T.; Schäpke, N. (2015). Towards a Thick Understanding of Sustainability Transitions—Linking Transition Management, Capabilities and Social Practices. Ecological Economics , 109 , 211-221.


Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 Brasil . https://pesquisassan.net.br/olheparaafome/


Reis, A. A. (2015). Desenvolvimento sustentável e uso recursos naturais em área de várzea do território do Baixo Tocantins da Amazônia Paraense: limites, desafios e possibilidades [Tese Doutorado, Universidade Federal do Pará].


Sousa, L. P. D. Q.; Pessoa, R. R. (2019). Humans, Nonhuman Others, Matter and Language: A Discussion from Posthumanist and Decolonial Perspectives. Trabalhos em Linguística Aplicada , 58 (2), 520-543.


Stengers, I. (2015). No Tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. Cosac Naify.


Stirling, A.; Scoones, I. (2020). COVID-19 and the Futility of Control in the Modern World. Issues in Science and Technology , 25-27.


Thorsen, L. M. (2020). Art, Climate Change and (other) Eco Materials: Rethinking the Cosmopolitanization of Aesthetics and the Aesthetics of Cosmopolitanization with Ulrich Beck. Global Networks , 20 (3), 564-583.


Tsing, A. (2010). Arts of Inclusion, or How to Love a Mushroom. Manoa , 22 (2), 191-203.


Umaña, V. (7 fevereiro, 2021). Página quince: El sesgo antiagrícola . La Nación. https://www.nacion.com/opinion/columnistas/pagina-quince-el-sesgo-antiagricola/FFZ2ASOJ7BDWJMLAVSR5MH7LU4/story /


Valadão , A de F. C. (2008). Teoria de Gaia e a preservação do meio ambiente.  Gestão e Conhecimento , 4 (2).


Virtanen, P. K.; Siragusa, L.; Guttorm, H. (2020). Introduction: Toward more Inclusive Definitions of Sustainability.  Current Opinion in Environmental Sustainability 43 , 77-82.


Zhouri, A.; Laschefski, K. (Eds.). (2010). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Editora Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


1 Uma versão anterior deste artigo foi apresentada durante o 3° Seminário América Latina (SIALAT), intitulado Democracia, natureza e epistemologias para pensar o amanhã, e realizado os dias 25, 26 e 27 de fevereiro (2021), em Belém do Pará (Brasil). Este documento é o resultado de uma reflexão/discussão acadêmica levantada pelos autores, enquanto estudantes doutorandos, na disciplina Desenvolvimento Rural I, do Curso de Pós- Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/ UFRGS), que ocorreu entre os meses de agosto a dezembro do ano de 2020. Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesses com terceiras partes durante a realização e publicação deste trabalho.

2 Engenheira agrônoma. Doutoranda em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Membro de Grupo de Pesquisa GEDAF/NUMA/UFPA. Email: ana.salheb@ufrgs.br

3 Sociólogo. Doutorando em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Membro de Grupo de Pesquisa Inovação, Sociedade e Eco-Territorialidades (GRIST/UFRGS). Email: luis.barboza@ufrgs.br

4 A floresta amazônica fornece, no mínimo, três classes de serviços ambientais: a manutenção da biodiversidade, o estoque de carbono e a ciclagem da água ( Fearnside, 2005) .

5 O auxílio emergencial é um benefício instituído no Brasil pela Lei de nº 13.982/2020 destinados a trabalhadores informais e de baixa renda, microempreendedores individuais e contribuintes individuais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O objetivo do auxílio foi mitigar os impactos econômicos causados pela Pandemia de COVID-19 no Brasil.

6. Trata-se do conjunto de artefatos eletrônicos que combinam recursos de computadores pessoais, com funcionalidades avançadas que podem estendidas por meio de programas aplicativos executados pelo seu sistema operacional.